quinta-feira, 13 de maio de 2010

À deriva

A família de Isabela era uma família típica do interior paraibano. Seu pai tinha uma pequena plantação de abacaxi e umas poucas galinhas, além de uma vaca leiteira. Sua mãe, prendada dona de casa. A menina ajudava a mãe, e freqüentava uma escolinha de ensino fundamental. Nas horas vagas, gostava de desenhar.

As coisas eram difíceis para a família. Por muitas vezes, Isabela ouvia sua mãe chorar baixinho dentro do quarto. Então colava o ouvido na porta e ouvia algo sobre dificuldades financeiras, contas para pagar. Era algo um tanto quanto complexo para sua cabeça de criança.

Desenhava do lado de fora da pequena casinha que moravam. Desenhava sol, pastos, vacas. Desenhava sua família, rodeada por abacaxis. Reproduzia o que fazia parte de sua realidade. Tudo o que podia ver naquele cenário sofrido. Sua mãe a chamava para lavar as verduras, e Isabela guardava cuidadosamente seus desenhos.

– Mãe – perguntou quando estava lavando tomates – porque você chora à noite?

A mulher parou de lavar as panelas por um instante. O que responder para aquela inocente menina de sete anos?

– É que sua mãe anda com umas dores nas costas – mentiu.

Isabela suspeitava que não era por causa disso. Teve certeza quando seu pai chegou em casa. Era homem novo, de trinta e sete anos. Mas com aparência cansada, um olhar abatido. Com a pele manchada por causa da exposição ao sol. Ele parecia desanimado. Trazia em seu rosto uma expressão de derrota.

– Isabela, pode continuar com seus desenhos – pediu a mãe.

– Quero ficar – disse a menina.

– Por favor, Isabela.

– Deixa a menina – disse o pai – ela não pode ficar sem saber das coisas.

– Ela é uma criança! – disse a mãe, subindo o tom de voz.

– Mas não pode ser enganada! – o pai respondeu no mesmo tom.

As duas permaneceram em silêncio por uns instantes. A mãe desligou a torneira e encostou-se ao balcão da cozinha. A menina ainda segurava um tomate, e o molhava na água barrenta da bacia. Fingia não prestar atenção na conversa.

– Nossa plantação – disse o pai, tristonho – está debaixo d’água. O rio transbordou ontem à noite.

Disse isso e sentou ao lado de Isabela, com um olhar perdido em direção à água barrenta da bacia, que se agitava toda vez que a menina lançava um tomate.

A plantação de abacaxi da família se localizava em um lugar nada apropriado. Era um terreno baixo, próximo a um rio perene, de uso comum a todos que moravam ali perto. Gado bebia água, mulheres lavavam roupas, crianças tomavam banho naquele rio. E vez por outra eram lançados alguns despejos.

– Choveu? – perguntou a mãe, com lágrimas nos olhos.

– Não. Transbordou somente.

– E não ficou nada?

– De abacaxi, nada.

A mãe abaixou a cabeça e começou a chorar baixinho. O pai resmungou alguma coisa, e foi até ela. Abraçaram-se por um longo instante. Agora estavam os dois chorando, como duas crianças. Isabela percebeu que era momento de sair dali. Saiu de fininho. Chegando do lado de fora, olhou para seus desenhos, que agora voavam pelo terraço. Não deu importância e foi caminhando em direção à plantação de abacaxi. O seu rosto começou a ser regado por lágrimas que escorriam silenciosamente. Seus pais estavam sofrendo. Sua família tinha perdido seu sustento. Sua mãe chorava todas as noites por causa das dificuldades, que agora só iriam se agravar. Estava chegando perto da antiga plantação. Pôde contemplar do alto a cena da destruição. Algumas casas mais próximas tinham sido totalmente submersas. Pensou no Abílio, que morava em um daqueles casebres. Pensou que poderia ter sido pior. Em um ponto um pouco mais alto, estava sua Escola, em ruínas. Perguntou a si mesma como seriam seus dias dali em diante. Será que continuariam morando ali? O que faria agora todas as tardes, já que não teria mais onde assistir aula? Olhou para o céu, como se esperasse um milagre divino. Em resposta, gaivotas voavam despreocupadas em direção ao sul. O vento forte agitava os cabelos da menina, que por vezes colava em seu rosto molhado pelas lágrimas incessantes. Olhou uma última vez para a triste paisagem. Famílias se lamentavam, ajoelhadas, com as mãos estendidas para o alto. Crianças choravam, homens pareciam procurar coisas perdidas em meio à lama. Fechou os olhos, e deu de costas para a cena. Deu três passos e parou. Agora seu choro estava contido em uma expressão que traduzia determinação e coragem incomuns para uma menina de 7 anos. Tornou a andar em direção a casa, onde encontraria seus pais, provavelmente congelados no mesmo drama: um abraço, lamentos, lágrimas.

Antes de entrar na casa, viu seus desenhos ainda sendo levados de um lado para outro, como pipas terrestres. A casinha, a família, os abacaxis. Tudo à deriva de um vento impiedoso. Todavia, não se preocupou em apanhá-los.

- Talvez seja assim mesmo – disse para si mesma, entrando na casa.

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