domingo, 30 de maio de 2010

Homenagem

Era uma garota como qualquer outra garota do sertão de Pernambuco. Era até mais bonita que a maioria delas. Cabelos louros, pele branquinha, olhos cor de mel. Estava no primeiro ano do ensino médio da Escola Estadual Prof. Pedro Pedrosa. Tinha quinze anos, com sorriso de menina e olhar de mulher. O único problema era seu nome. A moça tinha vergonha. Tinha raiva. Não gostava. A hora da chamada sempre era um sofrimento.

- Juriara?

- Presente – respondia timidamente.

Juriara. Porque não Priscila, Jéssica, Laís, ou Ana? Suas amigas é que eram sortudas. Mas seus pais tinham resolvido homenagear a si mesmos com o nome de sua filha. Jurandir e Iara se mesclaram para formar o nome da menina. E então surgiu, Juriara.

E faziam questão de explicar para todo mundo. Seja onde fosse. A última vez tinha sido no dentista. O doutor estava encantado com a formosura da menina.

- Você é bonita, tem que cuidar mais dos dentes. Qual o seu nome?

- Ju... – a menina tinha começado, já sentindo vergonha.

- Juriara – disse a mãe orgulhosa, com um sorriso largo.

- Juriara – repetiu o doutor, com ar de curiosidade – lenda folclórica?

A mãe fez cara feia.

- Não, doutor. Vem de Jurandir e Iara. Nós, os pais dela – explicou.

Seu Jurandir assentiu.

Orgulho dos pais, vergonha da menina. E ela convivia com essa cruz todos os dias, em cada chamada, toda vez que conhecia alguém e tinha que dizer o nome. Geralmente dizia o nome muito rápido, e completava:

- Mas pode chamar de Ju.

Mas não tinha como fugir. Certidão de nascimento, carteira de estudante, crachá da escola de vôlei. Tudo trazia estampado: Juriara.

Aconteceu que, um dia, Juriara se encantou com um menino que tinha chegado na cidade. Ninguém o conhecia ainda, e ele mal saia de casa. Quando saia, era no máximo até a esquina, para comprar mantimentos com sua mãe. Ele era um garoto de mais ou menos dezessete anos, meio alto, cabelos pretos que escorriam em sua testa. A nova sensação das mocinhas solteiras.

Em uma segunda feira como outra qualquer, estava saindo para a escola, logo depois do almoço. Quando botou os pés para fora de casa, seus olhos se arregalaram. Seu Jurandir proseava no portão com o tal menino e seu pai. O belo garoto olhou para Juriara, que permaneceu imóvel. A troca de olhares durou alguns segundos até que a menina deu meia volta para casa. Inventou uma dor de barriga e trancou-se no banheiro.

- Droga! Que droga – resmungava para si mesma – Droga de nome! Se eu me chamasse Laís, por exemplo, eu teria ido conhecer o moço. Mas Deus me livre de chegar e dizer: “Oi, meu nome é Juriara”. O menino haveria de se assustar e nem olhar mais na minha cara. Nunquinha!

- Que isso, menina – disse a mãe do lado de fora – ta falando sozinha?

- Estou lendo um livro em voz alta, mãe!

Quando por fim saiu do banheiro, deu de cara com o pai, comendo torradas na cozinha. Lançou-lhe um olhar fulminante.

- O senhor não falou de mim para eles, falou?

- Não – disse, mastigando a torrada – deveria?

- E... E sobre o que falaram? – perguntou Juriara, curiosa.

- Ele quer matricular o menino na Escola, e veio pedir informações. Por falar nisso, já está em sua hora, mocinha. Anda, anda.

Juriara ficou pálida por causa da informação. Agora seria mais difícil conviver com a situação. Chegando à escola, foi proibida de entrar.

- Fique esperando até o segundo horário – disse a mulher da recepção.

Juriara encostou-se na parede. Estava sozinha. Começou a pensar que deveria inventar uma doença para não sair de casa nos próximos sete dias. Pensou em juntar dinheiro para mudar o nome. Já tinha ouvido falar sobre isso, uma burocracia só. Será que o garoto esperaria até que tudo isso fosse resolvido?

- Oi.

Juriara olhou para trás e ficou ruborizada. Era o mesmo garoto que estava ocupando seus pensamentos. Ali, a uma régua de distância. Juriara sentiu seu estômago dando nós cegos. Teve vontade de vomitar. Ou sair correndo.

- Você também chegou atrasada? – o menino ignorou o fato de ter sido ignorado.

- Sim – foi tudo que ela conseguiu responder.

Em seguida ficaram em silêncio. Ele parecia estar tímido também. Juriara já tinha cogitado a possibilidade de mentir o nome. Já estava escolhendo o mais bonito em sua cabeça. Renata, Valeska, Andressa...

- Qual... Qual o seu... Nome? – perguntou o menino.

Juriara tremeu nas bases. Não tinha escolhido ainda. Se mentisse, corria sérios riscos de gaguejar e parecer uma idiota.

- Qual é o seu? – perguntou, e depois se arrependeu.

O menino contorceu os lábios. Demorou uns instantes e respondeu.

- Não vai rir de mim, hein?

Juriara fez que sim com a cabeça.

- Noriosvaldo - disse bem rápido. Em seguida explicou, tímido – sabe como é... Homenagem de pai e mãe.

***

sábado, 29 de maio de 2010

Surpresa

Sua alegria foi interrompida, naquela noite, por uma surpresa desagradável. Não por quem tenha sido, ou por quem tenha aparecido. Mas porque ela teve a ligeira impressão de estar sendo vigiada. Seguida. Observada. “Mas oras”, pensou. “Que estou fazendo? Quem sou eu?”. De qualquer maneira, lembrou-se do passado. Lembrou de tudo que haviam dito. E achou melhor fugir. Achou melhor esboçar um sorriso. Preferiu agir com naturalidade diante de seu passado exposto como uma ferida aberta. Entrou no carro, e mal pôde concentrar-se no que o colega estava dizendo:

“Eu agora estou acompanhando meu pai nesses dias...”

E seu pensamento ainda estava focado nas horas de sufoco. Seus olhos vagaram até fixar-se em algum ponto do infinito, presos a uma lembrança sufocante.

“...Ele precisa de minha companhia, você sabe...”

Não sabia. O que sabia é que queria ser feliz. Sabia o que estava fazendo. Não haveria de errar de novo, mas oh céus! Ninguém jamais entenderia isso. Por que é difícil entender um coração que não o nosso.

“... Boa noite.”

Sorriu timidamente, mostrando rapidamente seus dentes brancos. Tremendo no frio da madrugada, esforçou-se para acertar a fechadura. Caiu na cama, mas não chorou. Olhou para o teto. Para a lâmpada. Não sabe ao certo quantos minutos gastou pensando. Mas chegou à conclusão de que não mais agiria assim. De que não tinha de quem fugir. De que tinha que ser ela mesma. Com suas limitações, é verdade. Mas com suas convicções eternas. Apertou um botão qualquer do celular para acender o visor e poder ver a hora.

- É tarde – disse para si mesma. Sua voz era quase inaudível.

Apagou a luz e permitiu-se entrar na doce realidade dos sonhos.

quinta-feira, 27 de maio de 2010

Viagem

Estava deitada no banco de trás do carro. Observava a lua que, incansável, corria atrás do automóvel. Por vezes, o astro da noite era encoberto durante alguns segundos, por árvores que passavam tão rapidamente que mais pareciam manchas verdes. Já as estrelas, que preguiçosas; estas pareciam não preocupar-se em sair do lugar. Fechou os olhos, e se permitiu ser massageada pelo movimento do carro, cujo tremor servia para relaxar seus músculos tensos. Seu pensamento quase podia alcançar o céu que há pouco contemplava. Em seu coração, um misto de alegria, dúvida, preces e expectativas. Tornou a contemplar a louca corrida. A lua ainda estava na brincadeira. As manchas verdes ainda insistiam em calar a luz do satélite. E as estrelas, ainda preguiçosas, cumpriam seu papel de adorno celeste.

- Chegamos.

Então desembarcou, errante, de sua espaçonave particular.

terça-feira, 25 de maio de 2010

Gotas de chuva

Dançam céu abaixo

Soltas como versos livres

Nada as detém.


Sozinha, em meu quarto

Observo que se encostam à janela

Tornando-se reféns.


Pelo vidro escorrem presas

Dessa forma chega o fim

Do vai-e-vem.


Surge o sol, e à espreita

De trazê-las de volta,

No processo intervém.


Vão subindo, uma a uma

Na fantástica viagem

De volta para de onde vêm.


Ninguém mais as vê.

Agora o céu está azul.

Agora brilha o sol.


Então posso abrir a janela.

Já não sou incomodada pelas lágrimas do céu...

...Fico enlevada pelos raios sorridentes do sol.

-

Visão de mundo

Tomaz chegou da escola assustado.

- Pai, pai. Preciso de ir no doutor.

Seu pai, Sebastião, estava sintonizando uma rádio na cadeira de balanço da varanda.

- Que houve, menino?

- A professora disse que eu to com um problema na vista.

- Ela é professora ou doutora, diacho?

Era assim com o seu Sebastião. Preto no branco. Sem meias palavras. O menino ficou em silêncio, com cara de choro. O pai resolveu ceder.

- Então, ela disse o que?

- Disse que a minha visão de mundo é distorcida.

Sebastião tentou prender o sorriso, que saiu pela lateral de sua boca. Sabia muito bem o que isso significava. Tomaz, aos oito anos, provavelmente não saberia.

- E por mó de que ela disse isso?

- Ela perguntou o que eu achava mais importante na vida. Eu disse que o mais importante é brincar.

- Brincar? – o pai tinha começado a entender a colocação da professora.

- É, pai. Roubar manga no pomar dos vizinhos. Empinar a pipa tão alto que ela alcance o céu. Amarrar caixa de fósforos em rabo de lagartixa. Prosear até dar sono. E dormir até dar fome.

Sebastião olhou para o filho com um olhar de curiosidade. Esperou ele continuar.

- Aí ela olhou para mim e disse isso. Que minha visão de mundo é distorcida.

“Ora, meu Deus”, pensou Sebastião, “Que visão de mundo essa professora espera de um menino de oito anos?”. Puxou o menino para sentar-se no seu colo, e colocou o rádio de lado. Balançou-se com ele por uns instantes, lembrando de sua infância.

Infância dolorosa. Acordar cedo, junto com o galo, para trabalhar no roçado com o pai. Começou isso novo, mais novo que Tomaz. Uns cinco ou seis anos, talvez. Quando o sol baixava, ia ajudar o pai com as compras na mercearia. Sacolas pesadas. Feijão, sementes, inhames, beterrabas. Chegava em casa já de noite. Jantava, e caia no sono. Foi assim durante sua infância, juventude, vida toda. Não tinha estudado. Não tinha tido tempo para brincar, roubar mangas, empinar pipas, e toda aquela história de lagartixas. Tinha sido criado para seguir a tradição de homem valente, criador de muitas vacas, galinhas e cabras. E plantando muito milho e cana. E só.

- E quando vamos ao médico, pai? – Tomaz interrompeu os pensamentos de Sebastião.

Era hora da explicação. O pai, que nunca tinha estudado, ia ser um professor.

- Meu filho, quando a professora disse isso, não quis dizer exatamente isso.

- Que?

Sebastião coçou a cabeça e mordeu o lábio superior.

- O que ela quis dizer com isso – tentou ir direto ao ponto – é que o modo como você vê sua vida é errado. Ela queria que você tivesse dito que o mais importante era estudar, meu filho. Não roubar mangas.

O menino permanecia em silêncio. Parecia confortável nos braços do pai.

- Por isso sua professora disse isso. Que sua visão de mundo é... É o que mesmo?

- Dis-tor-ci-da.

- É. Distorcida. Foi por isso. Não tem nada a ver com problema na vista.

Tomaz pensou por alguns instantes. Fazia sentido o que seu pai tinha dito. A conversa dos dois foi interrompida por um grito que vinha de dentro de casa.

- Vocês dois! Hora do almoço.

Hora do almoço. A comida deliciosa os esperava. Depois disso, Sebastião ia voltar para sua plantação. Enxada nas costas, rosto queimado pelo sol, pés calejados. Tomaz ia fazer alguma coisa divertida. Empinar uma pipa, talvez. No outro dia a mesma coisa: Escola, e o resto do dia sempre era um baú (caixinha é pequeno demais) de surpresas. Levantaram-se da cadeira juntos, e o menino já ia à frente do pai, quando este o chamou.

- Psiu! Tomaz!

- Que é, pai?

- Na verdade – o pai disse, sorrindo – sua visão de mundo é certíssima. Certíssima.

sexta-feira, 21 de maio de 2010

Semana

Enquanto almoçava, olhou para o ímã de geladeira que sustentava um calendário. Vagou os olhos até achar o número 21. Era sexta feira. Os dias pareciam não passar, ou talvez estivessem passando rápido demais. O fato é que havia se perdido em meio ao nada que lhe acontecia.

quinta-feira, 20 de maio de 2010

À minha irmã

São sete anos que estranhamente
nos aproximam.
É um cuidado exagerado, que acredite:
não cansa.
É uma diferença tão visível,
mas que enlaça.

És a energia, és a força.
Loira vibrante que se aproxima
E de longe se percebe sua vinda.

No exagero, a ternura.
Na distância, um forte abraço.
Nas tapas, a candura serena.

Teu é esse poema.
Teus são esses versos.
Teu é meu amor eterno.
Somente teus, Lorena,
Minha admiração e afeto.


quarta-feira, 19 de maio de 2010

As Tartarugas

Esse caso aconteceu há uns poucos anos atrás, pelas bandas do interior do Maranhão. Não posso dizer que é de fato verídico, já que eu nunca vi gente falar com bicho. Mas vou repassar do mesmo jeito que ouvi. Zé do Caju era um fazendeiro humilde, plantava para seu próprio sustento. Homem do interior, de poucas palavras. Era conhecido por sua cara amarrada, e por nunca estar satisfeito com as coisas. Para tudo Zé do Caju tinha uma queixa. Sua mulher, das Graças, era uma graça de mulher. Passava a maior parte de seu tempo costurando cochas e toalhas. Mas Zé do Caju reclamava da mulher. Dizia que era velha, e que só sabia costurar. Sua filha, Benedita, era um primor. Na escola era boa aluna. Mas o pai reclamava da bagunça que ela fazia no quarto. Quantos livros, quantos papéis, quantas coisas, esperneava ele.

Zé do Caju, em um dia corriqueiro, andava tranquilamente pelo seu roçado. Já tinha reclamado de uns carrapichos que grudavam em sua perna cabeluda. Estava só, ele consigo mesmo e Deus, quando viu algo se mexendo por entre os arbustos. Preparou a espingarda e ficou de olho. Olhos bem abertos, acompanhando o movimento do arbusto. A coisa estava prestes a aparecer. Zé do Caju mantinha a calma. Era macaco velho, já tinha matado onça pintada e cobra venenosa. Seja lá o que fosse, seria fácil.
Então a coisa enfim apareceu. O rosto do fazendeiro refletia um misto de curiosidade e surpresa.

Era uma tartaruga. A tartaruga era diferente de todas as outras. Parecia querer dizer algo. Parecia gente. Quando viu Zé do Caju com a arma apontando para ela, suplicou:
- Oh não, oh céus. Não faça isso comigo.
Zé do Caju ergueu uma sobrancelha, coçou a testa e em seguida balançou a cabeça. Estava ficando biruta? Onde já se vira tartaruga falante nesse mundo?
- Que é que cê ta olhando? – a tartaruga perguntou desconfiada, massageando o lombo – Ai minhas costas! Ai minhas costas!
O homem estava agora com a arma apontando para o próprio pé, boquiaberto, sem tirar os olhos da tartaruga.
- Você... Fala – enfim balbuciou Zé do Caju – Como pode?
- Podendo, amigo. Ai, ai que dor nas costas.
- Que tanta dor nas costas é essa? Deixa de tanto alarde, ta me dando nos nervos.
- Ora, põe um casco nas costas e garanto que você vai precisar de muletas. Ai, ai!
- Bobagem – a voz não era da mesma tartaruga – nem ligo pro meu casco.

Dessa vez era outra tartaruga que saia pelo mesmo arbusto. Zé do Caju teve náuseas. Cogitou a possibilidade de sair dali correndo e procurar um psiquiatra. Das Graças ia dizer que ele estava levando muito sol na cabeça. Sua filha ia rir. Pai bobão.
- Esperem – disse o fazendeiro – não estou entendendo mais nada.
- Ai... Minhas costas... Casco inútil. Eu que não entendo o porquê desse casco. E não entendo o porque de você estar tão sorridente.
- Simples – disse a tartaruga que parecia feliz – isso faz parte de mim.
- Vocês não vão me escutar? – perguntou Zé do Caju, já ficando agoniado.
- Parte de você? Este casco definitivamente não é parte de mim. Ai, como pesa!
- É parte de você, é sua casa. Você vive a resmungar duma coisa que é sua e que te faz bem. Veja, temos um lar para todas as horas. Viajamos quilômetros sem sair de casa. Seja qual for o perigo, estamos sempre protegidos.

A tartaruga parou de falar sobre sua dor nas costas e ouviu os conselhos da outra. E Zé do Caju assistia a tudo, atônito.
- É bem verdade – prosseguiu a tartaruga em seu sermão – que precisamos carregar um fardo. Mas ora bolas, quem é que não carrega um? E para quem carrega o fardo, sempre ele é mais pesado do que o do amigo. Claro, não é ele que carrega o fardo do outro!

Zé do Caju começou a pensar em sua vida. Tartaruguinha mais sabida era aquela. Lembrou que tinha inveja do João da mercearia. Inveja de sua filha prendada. Inveja de sua mulher novinha, um pitel. Inveja até da mercearia, que era negócio lucrativo. Mas o fardo do outro sempre é mais leve, como dissera a tartaruga. Viu as coisas por outro lado. A filha do João era prendada, mas era burrinha como ela só. E não gostava de tomar banho. Não ia casar nunquinha desse jeito. Sua mulher falava pelos cotovelos, e tinha fama de gastadeira. Enquanto das Graças ajudava seu homem com as costuras. E pensou também que devia ser estressante aquela vida de comerciante.

O fazendeiro balbuciou um “adeus” às duas tartarugas e deu meia volta para a casa. No caminho, ainda estava a esfregar os olhos, dando murros na cabeça e falando consigo mesmo. Teria sido miragem? Pensou em voltar, dessa vez com testemunhas. Ele tinha um nome a zelar, não podia pegar fama de desajuizado. Mas preferiu guardar para si a cena – e os ensinamentos.
Abriu a porta da casa, e se deparou com a cena de todos os dias. Das Graças costurava uma toalha de mesa de retalhos. Zé do Caju achou a toalha bonita. De cores fortes. Agradeceu aos céus, em silêncio, por aquela mulher ser talentosa e prendada como era. Benedita estava deitada no sofá, com um de seus livros de literatura. Era uma menina bonita, e seria uma doutora mais na frente.

- Que houve, Zé? Cê ta branco – observou das Graças.
Zé do Caju não respondeu. Foi até a mulher e deu-lhe um beijo na testa. Chegou na filha e deu um beijo na bochecha que fez estalo. Em seguida saiu em silêncio para seu quarto. As duas se entreolharam.
- Você entendeu isso?
- Vai entender teu pai. Eu já disse, é o sol. É o sol.

***

segunda-feira, 17 de maio de 2010

Humanidade

Aquilo que parece ser fácil
Não é, na verdade, assim
Pensamentos vagam, soltos
E vêm procurar por mim

Vira e mexe, noite e dia
Perturbada sou com essa inquietude
Porquês me assolam de manhã
Divagações me afetam a saúde

Ora, que fazer então?
Onde buscar tais respostas?
Seria a vida tão insana?

De imediato, a solução
Vindo como um tiro nas costas:
A vida é, tão somente, humana.


[06.09.2009]

sábado, 15 de maio de 2010

Contagem

Dez, nove, oito.
Pode-se ver o tempo esvaindo-se.
Pode-se contemplar o cair do sol.
Sete, seis, cinco.
O convite para a obsolescência.
Quatro, três, dois.
Percebe-se certa distração.
Casam-se Sonho e Razão.
Um.
E foi.

sexta-feira, 14 de maio de 2010

Comparação

Te vi como quem saiu do cativeiro para a luz do sol
Te percebi como se fosse um perfume familiar
Te protegi como a um segredo de Estado
Estava contigo quando estavas só.

Te ouvia tal qual o médico que escuta o coração
Te buscava como o faminto ao alimento
Te entendia como perfeita sinfonia
Teu fardo era semelhante a bolhas de sabão.

Distraí-me como um soneto de rimas pobres
Andei como quem brinca de ciranda
E brincávamos juntos, na louca dança.

Teu céu era o meu céu e eu sabia
Que por mais que não fosse dito
Isso a ambos para sempre bastaria.



quinta-feira, 13 de maio de 2010

À deriva

A família de Isabela era uma família típica do interior paraibano. Seu pai tinha uma pequena plantação de abacaxi e umas poucas galinhas, além de uma vaca leiteira. Sua mãe, prendada dona de casa. A menina ajudava a mãe, e freqüentava uma escolinha de ensino fundamental. Nas horas vagas, gostava de desenhar.

As coisas eram difíceis para a família. Por muitas vezes, Isabela ouvia sua mãe chorar baixinho dentro do quarto. Então colava o ouvido na porta e ouvia algo sobre dificuldades financeiras, contas para pagar. Era algo um tanto quanto complexo para sua cabeça de criança.

Desenhava do lado de fora da pequena casinha que moravam. Desenhava sol, pastos, vacas. Desenhava sua família, rodeada por abacaxis. Reproduzia o que fazia parte de sua realidade. Tudo o que podia ver naquele cenário sofrido. Sua mãe a chamava para lavar as verduras, e Isabela guardava cuidadosamente seus desenhos.

– Mãe – perguntou quando estava lavando tomates – porque você chora à noite?

A mulher parou de lavar as panelas por um instante. O que responder para aquela inocente menina de sete anos?

– É que sua mãe anda com umas dores nas costas – mentiu.

Isabela suspeitava que não era por causa disso. Teve certeza quando seu pai chegou em casa. Era homem novo, de trinta e sete anos. Mas com aparência cansada, um olhar abatido. Com a pele manchada por causa da exposição ao sol. Ele parecia desanimado. Trazia em seu rosto uma expressão de derrota.

– Isabela, pode continuar com seus desenhos – pediu a mãe.

– Quero ficar – disse a menina.

– Por favor, Isabela.

– Deixa a menina – disse o pai – ela não pode ficar sem saber das coisas.

– Ela é uma criança! – disse a mãe, subindo o tom de voz.

– Mas não pode ser enganada! – o pai respondeu no mesmo tom.

As duas permaneceram em silêncio por uns instantes. A mãe desligou a torneira e encostou-se ao balcão da cozinha. A menina ainda segurava um tomate, e o molhava na água barrenta da bacia. Fingia não prestar atenção na conversa.

– Nossa plantação – disse o pai, tristonho – está debaixo d’água. O rio transbordou ontem à noite.

Disse isso e sentou ao lado de Isabela, com um olhar perdido em direção à água barrenta da bacia, que se agitava toda vez que a menina lançava um tomate.

A plantação de abacaxi da família se localizava em um lugar nada apropriado. Era um terreno baixo, próximo a um rio perene, de uso comum a todos que moravam ali perto. Gado bebia água, mulheres lavavam roupas, crianças tomavam banho naquele rio. E vez por outra eram lançados alguns despejos.

– Choveu? – perguntou a mãe, com lágrimas nos olhos.

– Não. Transbordou somente.

– E não ficou nada?

– De abacaxi, nada.

A mãe abaixou a cabeça e começou a chorar baixinho. O pai resmungou alguma coisa, e foi até ela. Abraçaram-se por um longo instante. Agora estavam os dois chorando, como duas crianças. Isabela percebeu que era momento de sair dali. Saiu de fininho. Chegando do lado de fora, olhou para seus desenhos, que agora voavam pelo terraço. Não deu importância e foi caminhando em direção à plantação de abacaxi. O seu rosto começou a ser regado por lágrimas que escorriam silenciosamente. Seus pais estavam sofrendo. Sua família tinha perdido seu sustento. Sua mãe chorava todas as noites por causa das dificuldades, que agora só iriam se agravar. Estava chegando perto da antiga plantação. Pôde contemplar do alto a cena da destruição. Algumas casas mais próximas tinham sido totalmente submersas. Pensou no Abílio, que morava em um daqueles casebres. Pensou que poderia ter sido pior. Em um ponto um pouco mais alto, estava sua Escola, em ruínas. Perguntou a si mesma como seriam seus dias dali em diante. Será que continuariam morando ali? O que faria agora todas as tardes, já que não teria mais onde assistir aula? Olhou para o céu, como se esperasse um milagre divino. Em resposta, gaivotas voavam despreocupadas em direção ao sul. O vento forte agitava os cabelos da menina, que por vezes colava em seu rosto molhado pelas lágrimas incessantes. Olhou uma última vez para a triste paisagem. Famílias se lamentavam, ajoelhadas, com as mãos estendidas para o alto. Crianças choravam, homens pareciam procurar coisas perdidas em meio à lama. Fechou os olhos, e deu de costas para a cena. Deu três passos e parou. Agora seu choro estava contido em uma expressão que traduzia determinação e coragem incomuns para uma menina de 7 anos. Tornou a andar em direção a casa, onde encontraria seus pais, provavelmente congelados no mesmo drama: um abraço, lamentos, lágrimas.

Antes de entrar na casa, viu seus desenhos ainda sendo levados de um lado para outro, como pipas terrestres. A casinha, a família, os abacaxis. Tudo à deriva de um vento impiedoso. Todavia, não se preocupou em apanhá-los.

- Talvez seja assim mesmo – disse para si mesma, entrando na casa.

quarta-feira, 12 de maio de 2010

Abstração

Não dá, não sei, não sei porque
Frente a frente, luz e escuridão
(Uma analogia um tanto quanto irônica)

Não dá, não sei, não sei porque
Paro, penso, caio no chão
(Uma cópia um tanto quanto tola)

Não dá, não sei, não sei porque
E não tente me questionar
(Tentativas um tanto quanto vãs...)

Não dá, não sei, não sei porque
O que sei é o que sinto
(Devaneios surreais de um fim de tarde)




terça-feira, 11 de maio de 2010

Outro mundo

Aos primeiros sinais do sol, ela acordou com um brilho nos olhos. Pisou com os dois pés no chão gelado e sentiu um ligeiro arrepio. Pôs-se de pé e conseguiu olhar-se no espelho. Cabelos desalinhados, rosto marcado pelas muitas horas de sono. Sem se incomodar com isso, abriu a janela e debruçou-se de olhos fechados. Mas já não sentia o aroma fresco das árvores banhadas pelo orvalho. Já não ouvia o zumbido dos insetos. O cheiro que vinha da cozinha já não era o de leite saído da vaca minutos atrás. Abriu os olhos e deu de cara com uma criança por trás do muro de sua casa.
- Tem um pão?
Entristeceu-se, e quis ir embora.

segunda-feira, 10 de maio de 2010

Analogia

Tarde da noite. Hora de dormir.
- Porque? - pergunta o menino.
- Porque sim - responde a mãe.
Ele deita na cama, mas não dorme.
Fica vendo as estrelas.

-

Tarde da noite. Hora de dormir.
- Porque? - pergunta a menina.
- Porque sim - responde a mãe.
Ela deita na cama, mas não dorme.
Fica escrevendo coisas.

Percurso

Nem vejo mais onde pisam meus pés
Nem sei se calejados estão.
O ardor do chão
A dor das pedras
E estou sem sandálias.

Oi.

Sem delongas e adornos, esse é e sempre será o melhor pontapé inicial de uma conversa. Dessa palavrinha surgiram grandes debates, notícias, fatos, fotos, memórias.

Estou iniciando mais um blog - acho que o terceiro ou quarto - e espero que este permaneça por um tempo. Porque tenho uma leve tendência e enjoar de blogs. Das cores. Do nome. Da bagunça ou organização. Do blog sim, de escrever nunca. Continuo quieta, construindo versos e contando contos, para satisfazer a necessidade pessoal de alguém que escreve. Sim, porque intitular-me escritora é deveras pretensioso.

Mas não para por aí.

Todo ser que escreve tem o desejo de ser lido.
Como todo ator gosta de ser visto; todo músico, de ser ouvido; toda dançarina, de ser aplaudida; todo pintor, de ser contemplado. Isto não é baixa auto-estima do artista, absolutamente. É querer mostrar seu eu, sua visão de mundo. É querer dizer através da arte o que provavelmente não seria aceito em um discurso.

Como de praxe em toda boa introdução, permitam-me revelar um pouco sobre o que vocês encontrarão por aqui: tudo. Do conto à poesia. Do causo à crônica. Da opinião ao desabafo.

Assim é e será o Memórias do Eu.
Memórias do Eu.
Memórias doeu.

E voltem sempre...