terça-feira, 25 de maio de 2010

Visão de mundo

Tomaz chegou da escola assustado.

- Pai, pai. Preciso de ir no doutor.

Seu pai, Sebastião, estava sintonizando uma rádio na cadeira de balanço da varanda.

- Que houve, menino?

- A professora disse que eu to com um problema na vista.

- Ela é professora ou doutora, diacho?

Era assim com o seu Sebastião. Preto no branco. Sem meias palavras. O menino ficou em silêncio, com cara de choro. O pai resolveu ceder.

- Então, ela disse o que?

- Disse que a minha visão de mundo é distorcida.

Sebastião tentou prender o sorriso, que saiu pela lateral de sua boca. Sabia muito bem o que isso significava. Tomaz, aos oito anos, provavelmente não saberia.

- E por mó de que ela disse isso?

- Ela perguntou o que eu achava mais importante na vida. Eu disse que o mais importante é brincar.

- Brincar? – o pai tinha começado a entender a colocação da professora.

- É, pai. Roubar manga no pomar dos vizinhos. Empinar a pipa tão alto que ela alcance o céu. Amarrar caixa de fósforos em rabo de lagartixa. Prosear até dar sono. E dormir até dar fome.

Sebastião olhou para o filho com um olhar de curiosidade. Esperou ele continuar.

- Aí ela olhou para mim e disse isso. Que minha visão de mundo é distorcida.

“Ora, meu Deus”, pensou Sebastião, “Que visão de mundo essa professora espera de um menino de oito anos?”. Puxou o menino para sentar-se no seu colo, e colocou o rádio de lado. Balançou-se com ele por uns instantes, lembrando de sua infância.

Infância dolorosa. Acordar cedo, junto com o galo, para trabalhar no roçado com o pai. Começou isso novo, mais novo que Tomaz. Uns cinco ou seis anos, talvez. Quando o sol baixava, ia ajudar o pai com as compras na mercearia. Sacolas pesadas. Feijão, sementes, inhames, beterrabas. Chegava em casa já de noite. Jantava, e caia no sono. Foi assim durante sua infância, juventude, vida toda. Não tinha estudado. Não tinha tido tempo para brincar, roubar mangas, empinar pipas, e toda aquela história de lagartixas. Tinha sido criado para seguir a tradição de homem valente, criador de muitas vacas, galinhas e cabras. E plantando muito milho e cana. E só.

- E quando vamos ao médico, pai? – Tomaz interrompeu os pensamentos de Sebastião.

Era hora da explicação. O pai, que nunca tinha estudado, ia ser um professor.

- Meu filho, quando a professora disse isso, não quis dizer exatamente isso.

- Que?

Sebastião coçou a cabeça e mordeu o lábio superior.

- O que ela quis dizer com isso – tentou ir direto ao ponto – é que o modo como você vê sua vida é errado. Ela queria que você tivesse dito que o mais importante era estudar, meu filho. Não roubar mangas.

O menino permanecia em silêncio. Parecia confortável nos braços do pai.

- Por isso sua professora disse isso. Que sua visão de mundo é... É o que mesmo?

- Dis-tor-ci-da.

- É. Distorcida. Foi por isso. Não tem nada a ver com problema na vista.

Tomaz pensou por alguns instantes. Fazia sentido o que seu pai tinha dito. A conversa dos dois foi interrompida por um grito que vinha de dentro de casa.

- Vocês dois! Hora do almoço.

Hora do almoço. A comida deliciosa os esperava. Depois disso, Sebastião ia voltar para sua plantação. Enxada nas costas, rosto queimado pelo sol, pés calejados. Tomaz ia fazer alguma coisa divertida. Empinar uma pipa, talvez. No outro dia a mesma coisa: Escola, e o resto do dia sempre era um baú (caixinha é pequeno demais) de surpresas. Levantaram-se da cadeira juntos, e o menino já ia à frente do pai, quando este o chamou.

- Psiu! Tomaz!

- Que é, pai?

- Na verdade – o pai disse, sorrindo – sua visão de mundo é certíssima. Certíssima.

2 comentários:

Anônimo disse...

Deliciosa leitura. Lembro das minhas desventuras no subúrbio carioca, correndo descalço pelas ladeiras, roubando jaca e tomando banho de rio.

Obrigado Fernandoca

Anônimo disse...

é um melhor que o outroo.
plausível :D

- Ana Raquel

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