sábado, 3 de julho de 2010

Andirá

Era corrente dizer que a moça tinha esse nome por causa da noite em que nascera. A velha índia da tribo dos Potiguaras, Amonati, prevera maldição na vida da criança que vinha ao mundo. Sua mãe, Apuana, tivera fortes contrações, enquanto os homens da tribo ajuntaram-se ao redor do fogo para clamar aos deuses. Moças corriam desnorteadas, algumas em busca de água, outras procurando por ajuda. Amonati permanecia séria. Por vezes perguntara a Apuana se não seria melhor abrir mão da vida da menina.

Não! De jeito nenhum”, implorava a mãe. “Que meu filho tenha o direito à vida!

Conta-se que, naquele momento, um exército furioso de morcegos invadiu a pequena oca mal-iluminada. Naquela hora, ao passo que uma vida brotava, outra se esvaia. Apuana tomou a criança pelos braços e fitou-lhe os olhos. As moças abraçavam o corpo da mãe, que jazia sobre as folhas de palmeira. Os morcegos dançavam loucamente, emitindo sons que pareciam gargalhadas ferozes.

Amonati, que tinha trazido a menina ao mundo, decidiu chamá-la Andirá, que em tupi significa morcego. A velha desejava, com isso, que durante toda a sua existência, ela pudesse lembrar de como viera ao mundo: roubando a vida de sua mãe.

I

Aos primeiros sinais do novo dia, Aruana partiu para a caça. Era conhecido por sua velocidade e destreza. Caminhou lentamente por entre as árvores, em busca de seu alvo. Como se flutuasse, pisava nas folhas secas sem fazer barulho. A concentração do índio, porém, foi quebrada por um ruído distante. Andou sorrateiramente alguns metros até que descobrisse o bicho causador do incômodo.

No rio Javaés, Andirá cantarolava. A índia de cabelos negros e pele dourada banhava-se tranquilamente nas águas calmas e esverdeadas, com o corpo submerso e a cabeça inclinada para os céus. Aruana ficou parado, e o único movimento que pode fazer foi baixar a lança. O índio ficou hipnotizado com o canto daquela voz macia. Ele acompanhava cada movimento com os olhos. Sua cabeça balançava, sendo levada pelo ritmo da música e de seu corpo. Era ela a moça que reinava em seus pensamentos, que tirava seu sono e o fazia delirar.

- Aruana?

Como que acordado de um sono profundo, Aruana arregalou os olhos e fez um movimento brusco para trás. A índia agora se escondia por trás das vitórias-régias. O jovem sentiu um misto de pavor e vergonha. Em um ato instintivo diante de um perigo, correu em direção à sua oca. Naquele dia, Aruana voltou sem nada em mãos, mas com muito em seus pensamentos. Deitou-se em sua rede e se permitiu viver plenamente no campo dos sonhos.

II

Andirá vestia-se apressadamente depois da fuga de Aruana. A moça bonita era tímida, e jamais tinha se envolvido com homem nenhum. Crescera ouvindo sobre a morte de sua mãe, e se julgava merecedora da maldição que lhe fora prometida. Temia que um rapaz herdasse a praga ao se casar com ela. Andirá sentou-se em uma rocha na beira do Javaés e desatou a chorar. Clamou aos céus e à natureza; clamou por uma resposta, por uma direção. Tudo que ouviu, porém, foi o silêncio.

O silêncio foi interrompido por sons que vinham ao longe. Temeu que fosse a tribo dos Yanaytas, os ferozes canibais. Eles aterrorizavam a aldeia desde que a moça era uma criança. Achou que fossem muitas pessoas, e pareciam trazer armas. Andirá correu para o arbusto mais próximo e ficou em silêncio. As vozes tornavam-se ensurdecedoras à medida que se aproximavam. Andirá chorava silenciosamente, temendo uma invasão da tribo inimiga. Pôde ver sombras, que se transformaram em vultos, que viraram pessoas. Não eram os Yanaytas. Não eram os homens de sua tribo.

Nunca os tinha visto antes. Tinham a pele branca, os cabelos claros e alguns tinham o rosto coberto por pelos. Traziam lanças de modelos diferentes dos que havia visto. E estavam falando algo incompreensível. Andirá temeu que não estivesse ali por motivos de paz. Observava suas gargalhadas nervosas, seus olhares secos. Trajavam muitas roupas, e traziam bolsas consigo. Pareciam estar procurando por alguma coisa. Ou por alguém.

- Oi, menina.

Uma superfície áspera tocou os ombros de Andirá. Como falara em tupi, a moça pensou que podia ser Aruana, em uma tentativa de pedir perdão. Quis dizer para que ele fugisse daqueles homens sem cor. Pareciam perigosos. Mas Andirá sabia que não era seu amigo. Aquela não era a melodia da voz de Aruana; voz que conhecia tão bem desde que era uma criança. A voz insistia mais firme:

- Menina! Olhe para mim.

Andirá tentou inutilmente escapar com um movimento brusco, sendo facilmente agarrada pelo homem. Seus olhares por fim se encontraram. O homem usava uma espécie de chapéu. Tinha apenas uma pena vermelha, enquanto o cacique de sua tribo usava um com várias. Seus olhos eram da cor das águas do Javaés, e jamais vira uma pele tão pálida. O homem deu um meio sorriso. Parecia achar engraçada a expressão de horror da jovem índia.

- Qual o seu nome?

A índia fitava o homem furiosamente, ainda presa em seus fortes braços. O homem falou algo para o resto do grupo. Andirá não entendeu, mas pareceu que tinha sido uma ordem para que saíssem. Então todos saíram em disparada pelas matas. Andirá viu o terror indo embora, e acalmou-se. Os olhos verdes voltaram a encarar os negros olhos da moça.

- Se acalme – disse o homem – não vou fazer nenhum mal.

Andirá pouco a pouco soltou os braços. Sentiu que perdia a força das pernas e logo estava apoiada no ombro de seu protetor. Fraca, indefesa, impotente. O homem a tomou pelos braços e a sentou na relva, sob uma árvore.

- Me chamo Silvério. E você, quem é?

- Andirá.

A palavra, que trazia consigo a maldição de uma vida roubada, escapou dos lábios da índia lentamente. Após ter revelado sua identidade, a moça abaixou o olhar.

- Bonito nome.

Silvério segurou o rosto da índia com as duas mãos. Em poucos segundos, os lábios vermelhos do rapaz tocaram a boca de Andirá. A moça não lutou contra. Sequer se mexeu. Apenas se deixou conduzir por aquele caminho que jamais havia explorado: a estrada de mão única que direciona dois corações. Em seguida, voltou a olhar para Silvério. Seus olhos já não traziam uma expressão de pânico, mas de conforto. Reclinou a cabeça no ombro do homem, e envolveu sua cintura com seus braços. O único som que ela ouvia eram as calmas águas do Javaés e os batimentos agitados do coração do jovem rapaz. Não se sabe por quanto tempo ficaram perdidos naquele devaneio...

III

A aldeia estava em chamas. Crianças choravam, procurando por seus pais. Homens pálidos corriam pelas ocas, capturando as moças e lutando contra os rapazes. Aruana tinha sido levado por um homem alto para um tronco onde estavam sendo amarrados os índios, que em vão lutavam contra as lanças de metal.

Andirá chegou abraçada com Silvério. A moça parou e olhou para a cena da destruição. Ao longe, viu sua oca, completamente destruída. Os homens brancos, ao que tudo indicava, eram os responsáveis por aquilo tudo. Silvério não pôde conter o constrangimento.

- Andirá, eu...

Uma das moças da tribo, ao ver Andirá acompanhada por um branco, gritou:

- Ela é a culpada! Ela deveria ter morrido, e não a pobre Apuana! Ela trouxe maldição para nossa tribo! Ela invocou esses homens para nos destruir!

Todos calaram diante dessa afirmação e voltaram os olhos para a índia. Agora, com lágrimas nos olhos e passos vacilantes para trás, repetia baixinho:

- Não fui eu... Não fui eu...

Saiu correndo para as matas vestidas da escuridão da noite. Atrás dela, o jovem Silvério buscava tomá-la de volta para seus braços. Amarrado no tronco e com lágrimas nos olhos, Aruana assistia a tudo.

IV

Meses tinham se passado desde o acontecido. E muita coisa tinha mudado também. Os índios entenderam que os homens brancos tinham uma missão importante de ajudá-los a alcançar níveis que jamais conseguiriam sozinhos. Seus rituais milenares foram substituídos por missas. Seus colares e cocares foram trocados pelas pesadas roupas que lhes foram entregues. E sua riqueza escondida na terra foi vendida a troco de objetos nunca vistos antes. As ocas deram lugar às primeiras casas da região. Todos tinham mudado seus hábitos de vida, embora insistissem com alguns: dormir em redes e o excesso de banhos.

Andirá casou-se com Silvério, indo contra a opinião dos anciões, em uma capela improvisada, conduzidos por um Padre. Na frente da Bíblia Sagrada, selaram um compromisso que vingaria até que a morte levasse um deles. Andirá passava o dia em casa, enquanto Silvério saia com os homens para trabalhar.

A moça nunca entendera ao certo que tipo de trabalho era executado. Não era de plantar, colher; isso ficou para os índios. Sabia que tinha algo a ver com as riquezas de seu povo. As riquezas que brotavam da terra abençoada pela natureza.

Desde o episódio do Rio Javaés, Aruana não tinha mais dirigido a palavra a Andirá.

V

Andirá estava próximo ao Rio Javaés. Tinha ido à procura de Silvério, o homem ao qual decidira entregar seu coração. O homem que a protegia, que estava com ela e tinha lhe mostrado um Novo Mundo. Tinha esquecido a sua lendária maldição. Mas não encontrara o marido. Encontrou ali lembranças do passado, quando foi observada por Aruana durante o banho. Sorriu consigo mesma, e lamentou-se por ter perdido seu fiel amigo. Também tinha sido ali onde viu Silvério pela primeira vez. As margens do Rio Javaés... “Esse lugar é misterioso”, pensou. Em seguida, não pôde ver mais nada. Algo lhe encobria a visão, e estava sendo arrastada por alguém que não emitia o menor ruído.

VI

Quando Silvério chegou em casa no fim da tarde, não viu Andirá em seu lugar de sempre, esperando seu homem com um sorriso. Tomado por um súbito desespero, foi em busca de informações sobre a amada. Ninguém tinha visto, ninguém tinha ouvido falar de para onde ela tinha ido. O marido percebeu que não estavam se importando com seu sofrimento. Na verdade, desde o episódio da conquista do território, os membros da tribo não olhavam mais para Andirá. Com exceção de um: Aruana. E foi a ele que Silvério recorreu.

- Jovem – começou, ofegante – por onde anda minha esposa? – fazia questão de lembrá-lo que ela lhe pertencia.

- Andirá? O que aconteceu?

- Não está em parte alguma.

Então saíram juntos, os dois apaixonados, em busca da índia de pele dourada.

VII

A empreitada durou algumas horas, até que Aruana conduziu-os para um lugar. Não queria que fosse verdade, embora sua intuição falasse forte. Enquanto corria, chorava compulsivamente, como se soubesse o final da história. Silvério apenas corria, tomado pela fúria e pela ânsia de encontrar sua amada.

Depois de um tempo, chegaram à cena do horror, conforme dizia o coração de Aruana. Diante dos restos mortais de Andirá, ouviu-se o grito desesperado de um homem que perdera sua mulher. Ouviu-se também, ainda que muito baixo, os sussurros de choro de um homem que perdera sua deusa.

Já era noite, e os morcegos enfeitavam de piruetas o céu dos Yanaytas.

15 comentários:

Guigui disse...

Excelente, mas qual é a surpresa? Nenhuma. Não tenho dúvidas que uma mente dessas, poderia criar algo tão diferente, e ao mesmo tempo tão bom. Parabénas Pong. Xero

Rebeca disse...

fernandinha uma dica p tu, nunca faça um post muita grande num blog, assusta as pessoas, raramente uma pessoa le um texto desse tamanho. Eu mesma leio por cima pra ve se o assunto me interessa, caso contrário nem leio. Dava p tu ter dividido esse post em 6 outros :P

falando sobre o texto agora, eu gostei muito. Foi tu mesma que escreveu?? Oo

Fernanda Paiva disse...

Meninas, obrigada! Vocês não sabem como esses comentários me incentivam. Devolvo os parabéns às duas, que, de acordo com seu estilo, detonam também :)

Rebeca, você tem razão sobre posts grandes.
Eu tento me policiar, mas confesso que nem sempre consigo. Mas vou ficar mais ligada!

Anônimo disse...

Nandoca, parabéns. Não se preocupe com o tamanho do post, acho que leria um livro teu numa tarde. Os seus textos são perigosos para mim pois me enebriam e me perco nas palavras, não há tempo, não há mundo, penas o que você me conta.
Quanto mais te leio mais quero ler.
Guardo muitas saudades desta minha amiguinha violeira e escritora.

F.Nobre

Fernanda Paiva disse...

Poxa, Felipe, obrigada!
Também tenho saudades das tardes onde todos conversávamos e tocávamos violão nas horas vagas de trabalho... Hehehehe.
Volte sempre, você me incentiva muuuito!

F.Paiva

Leonardo disse...

Fernandinha , muito bom o texto. Cada um com a sua poesia faz a web transbordar de suspiros.

Fernanda Paiva disse...

Pois é, Leo, graças a web que as pessoas têm a alegria de ler palavras como as suas, que ora nos confortam e ora nos inquietam para a realidade. :)

Anônimo disse...

é dessas leituras que a gente não consegue parar de correr os olhos.

morro de orgulho!

J.Seravalli :P

:*

Fernanda Paiva disse...

Juuuuh! Talvez seja porque todo mundo consegue se identificar de cara com um dos três personagens... E aí queremos ver onde isso vai dar. :)

Beijão!

Anônimo disse...

fernandinha, parabéns v é mais q demais
bjoa
mainha

Fernanda Paiva disse...

Poxa, mãe! Você por aqui? =D

Beijos! Obrigada...

H.P.S disse...

Parabéns jovem escritora, é um texto bastante envolvente e imprevisível quanto ao seu fim.

Falo isso porque tentei parar de ler o texto em alguas partes, mais algo me envlvel de tal forma que não me deixava parar.

Para mim? é sem dúvida um texto digno de ser publicado em um livro de contos.

Mais uma vez parabéns e muito sucesso.

H.P.S

Fernanda Paiva disse...

Meu querido HPS...

Você sabe que tem um papel muito importante nessa trajetória. E, se um dia eu publicar uma frase sequer, seu nome constará na lista dos que merecem uma dedicatória especial.

Sucesso em dobro pra você...

Philipe disse...

Texto muiiiiiito bom =D
parabéns moça!

p.s.: tive pena da Andirá

Fernanda Paiva disse...

Poxa Philipe, até eu tive!
Ainda nem acredito que ela morreu! :/

Obrigada!

- Fernanda Paiva

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