terça-feira, 6 de julho de 2010

Memórias de um cético

Agora que cheguei ao final da corrida, ainda que como perdedor, assumo que fui um cético. Nesta tarde fria de outono, em algum lugar da Romênia, permaneço imóvel diante de uma lareira que em nada aplaca o frio que se faz presente em mim. Preso em minhas lembranças, não me incomodo ao perceber que meu chá preto está esfriando... Esfriando como meu coração esfriou. Graças à maldita descrença, saí do meu Recife para este ambiente inóspito.


Amor, família, Deus, Diabo, valores, paraíso, felicidade, prazer. Palavras que não passavam de vocábulos a serem evitados. Sequer na poesia eu tinha esperança, nem mesmo em crianças eu via beleza. Arte comprada. Futuros hipócritas. Apeguei-me fielmente à ciência dos cálculos. Ah, a engenharia! Esta não deixava dúvidas quanto à sua razão de ser.


Acompanhei meus pais à Igreja até meus dezesseis. Até os dez, esperneava para brincar em algum lugar do pátio. Dos dez em diante, apenas permanecia de cabeça baixa. Não tive amigos; para ser bem sincero, não permiti demasiada aproximação com as pessoas. Nunca me deixei convencer por aqueles sorrisos glamourosos ostentados em festas sociais.


Não tive mulheres. Com exceção de uma. Apenas uma. Mas isso já faz muito tempo. O calor inebriante de Copacabana me conduzira àquele momento. Era uma russa muito branca, mais alta do que eu. Lembro bem de seus cabelos loiros que gingavam conforme o vento, por vezes mostrando as curvas delicadas de seu pescoço. Seu nome era Zoya.


Zoya trouxe vida aos meus vinte e poucos anos. Falava-lhe com entusiasmo sobre engenharia, planetas, ciência e filosofia. Em troca, ela me trazia um discurso moralista de fidelidade, amizade, fé e esperança. Falava de filhos, futuro, sonhos e outras coisas que fazem os homens perderem os miolos.


Sentia que estava me convencendo dessas verdades, quando Zoya partiu sem deixar outro rastro que não seu perfume. Em minha roupa, em minha casa, em minha vida... Tudo exalava o bálsamo daqueles cabelos. Mas ela se foi. Sem deixar uma carta. Sem lágrimas. Sem algo que tornasse seu discurso algo mais do que palavras simplórias. Fui levado, naquele momento, pelo instinto racional masculino: Fiquei perdido, conduzido pelos passos da senhorita.


Depois disso, construí uma rotina segura de estudos, pesquisas e leitura de clássicos. Atei-me ao pensamento humanista como um compromisso diário: eu era de fato quem mais importava para o andamento da minha vida, não sendo necessária a interferência de outrem.


Meus relacionamentos limitavam-se a minutos diários com o padeiro, o síndico do prédio, um ou outro vizinho que tomava o mesmo elevador. Observava as pessoas e seus comportamentos hostis e desonestos, jamais permitindo que se aproximassem de mim.


Não sei por que essas memórias invadem minha mente todo fim de tarde. Se for a lareira, que me lembra o calor de Copacabana, que seja retirada! Se for o chá que me remete aos cafés matinais preparados por minha mãe, que eu deixe o vício! O que quer que seja, que me deixe em paz!


Fui um cético. Fui um descrente que viveu para colecionar diplomas, e que hoje percebe que a companhia deles me põe sob o eterno jugo do conhecimento demasiado. Viver para os números não me trouxe nada além de um permanente cálculo renal. O medo dos relacionamentos me trouxe até esta poltrona solitária, em algum lugar da Romênia. E esta lareira nem mesmo serve para esquentar meu chá.

9 comentários:

Anônimo disse...

CA RA CA. eu AMEI. :~~

muito boom Fê. o/

queria que tivesse mais. *----* hahah'
e pra onde foi a Zoya? :( rsrs


(Lah)

Guigui disse...

E como não parabenizar por tão boa narrativa, tão boa mensagem, tão boa filosofia... Parabéns Fer..

;**

Fernanda Paiva disse...

Hahaha, esse aí infelizmente vai ficar por aí mesmo... E sobre a Zoya, fica a questão. Ela realmente ou amou? Se sim, deve ter partido por não aguentar a convivência. A minha Zoya, no contexto, deve estar em algum asilo russo, provavelmente lembrando do cético que fez parte de sua juventude. E a sua? :)
Beijão, Lah!

Anônimo disse...

Lindo, simplesmente lindo!

Seu talento é o tesouro mágico e encantador que me entorpece diariamente.

Com saudades

F.N

Ana Karenina disse...

Nanda, que narrativa maravilhosa!
Parabéns, viu?!
Mantenha-se assim, cheia de sentimento e verdade, até mesmo nas histórias inventadas que, quem sabe, sejam a história verdadeira de alguém.

Beijo!

Fernanda Paiva disse...

Nobre Felipe.

Seus comentários me motivam a continuar escrevendo!

Saudades!

-Fernanda Paiva

Fernanda Paiva disse...

Nina, é sempre bom ter você aqui...
Pois é. Histórias que, se não cuidarmos, pode ser a nossa. Vivamos uma vida sem arrependimentos! =)

Saudade de você, minha flor!

Beijo grande!

- Fernanda Paiva

Anônimo disse...

se t unãou fuousse ucureunte ueu dizia que tu fuma uma, massa demais tua viagem, tu e muito loca boyzinha, imagino se tu fuma-se uns baks, uvagem geralzzzzz

Anônimo disse...

Kkkkkkkkkkkkkkkkkkkk
Para você ver que criatividade está associada à lucidez, e não à inconsciência! :) Obrigada por ter lido e gostado, volte sempreee =)

- Fernanda Paiva

Postar um comentário

Sou toda ouvidos.