quarta-feira, 19 de maio de 2010

As Tartarugas

Esse caso aconteceu há uns poucos anos atrás, pelas bandas do interior do Maranhão. Não posso dizer que é de fato verídico, já que eu nunca vi gente falar com bicho. Mas vou repassar do mesmo jeito que ouvi. Zé do Caju era um fazendeiro humilde, plantava para seu próprio sustento. Homem do interior, de poucas palavras. Era conhecido por sua cara amarrada, e por nunca estar satisfeito com as coisas. Para tudo Zé do Caju tinha uma queixa. Sua mulher, das Graças, era uma graça de mulher. Passava a maior parte de seu tempo costurando cochas e toalhas. Mas Zé do Caju reclamava da mulher. Dizia que era velha, e que só sabia costurar. Sua filha, Benedita, era um primor. Na escola era boa aluna. Mas o pai reclamava da bagunça que ela fazia no quarto. Quantos livros, quantos papéis, quantas coisas, esperneava ele.

Zé do Caju, em um dia corriqueiro, andava tranquilamente pelo seu roçado. Já tinha reclamado de uns carrapichos que grudavam em sua perna cabeluda. Estava só, ele consigo mesmo e Deus, quando viu algo se mexendo por entre os arbustos. Preparou a espingarda e ficou de olho. Olhos bem abertos, acompanhando o movimento do arbusto. A coisa estava prestes a aparecer. Zé do Caju mantinha a calma. Era macaco velho, já tinha matado onça pintada e cobra venenosa. Seja lá o que fosse, seria fácil.
Então a coisa enfim apareceu. O rosto do fazendeiro refletia um misto de curiosidade e surpresa.

Era uma tartaruga. A tartaruga era diferente de todas as outras. Parecia querer dizer algo. Parecia gente. Quando viu Zé do Caju com a arma apontando para ela, suplicou:
- Oh não, oh céus. Não faça isso comigo.
Zé do Caju ergueu uma sobrancelha, coçou a testa e em seguida balançou a cabeça. Estava ficando biruta? Onde já se vira tartaruga falante nesse mundo?
- Que é que cê ta olhando? – a tartaruga perguntou desconfiada, massageando o lombo – Ai minhas costas! Ai minhas costas!
O homem estava agora com a arma apontando para o próprio pé, boquiaberto, sem tirar os olhos da tartaruga.
- Você... Fala – enfim balbuciou Zé do Caju – Como pode?
- Podendo, amigo. Ai, ai que dor nas costas.
- Que tanta dor nas costas é essa? Deixa de tanto alarde, ta me dando nos nervos.
- Ora, põe um casco nas costas e garanto que você vai precisar de muletas. Ai, ai!
- Bobagem – a voz não era da mesma tartaruga – nem ligo pro meu casco.

Dessa vez era outra tartaruga que saia pelo mesmo arbusto. Zé do Caju teve náuseas. Cogitou a possibilidade de sair dali correndo e procurar um psiquiatra. Das Graças ia dizer que ele estava levando muito sol na cabeça. Sua filha ia rir. Pai bobão.
- Esperem – disse o fazendeiro – não estou entendendo mais nada.
- Ai... Minhas costas... Casco inútil. Eu que não entendo o porquê desse casco. E não entendo o porque de você estar tão sorridente.
- Simples – disse a tartaruga que parecia feliz – isso faz parte de mim.
- Vocês não vão me escutar? – perguntou Zé do Caju, já ficando agoniado.
- Parte de você? Este casco definitivamente não é parte de mim. Ai, como pesa!
- É parte de você, é sua casa. Você vive a resmungar duma coisa que é sua e que te faz bem. Veja, temos um lar para todas as horas. Viajamos quilômetros sem sair de casa. Seja qual for o perigo, estamos sempre protegidos.

A tartaruga parou de falar sobre sua dor nas costas e ouviu os conselhos da outra. E Zé do Caju assistia a tudo, atônito.
- É bem verdade – prosseguiu a tartaruga em seu sermão – que precisamos carregar um fardo. Mas ora bolas, quem é que não carrega um? E para quem carrega o fardo, sempre ele é mais pesado do que o do amigo. Claro, não é ele que carrega o fardo do outro!

Zé do Caju começou a pensar em sua vida. Tartaruguinha mais sabida era aquela. Lembrou que tinha inveja do João da mercearia. Inveja de sua filha prendada. Inveja de sua mulher novinha, um pitel. Inveja até da mercearia, que era negócio lucrativo. Mas o fardo do outro sempre é mais leve, como dissera a tartaruga. Viu as coisas por outro lado. A filha do João era prendada, mas era burrinha como ela só. E não gostava de tomar banho. Não ia casar nunquinha desse jeito. Sua mulher falava pelos cotovelos, e tinha fama de gastadeira. Enquanto das Graças ajudava seu homem com as costuras. E pensou também que devia ser estressante aquela vida de comerciante.

O fazendeiro balbuciou um “adeus” às duas tartarugas e deu meia volta para a casa. No caminho, ainda estava a esfregar os olhos, dando murros na cabeça e falando consigo mesmo. Teria sido miragem? Pensou em voltar, dessa vez com testemunhas. Ele tinha um nome a zelar, não podia pegar fama de desajuizado. Mas preferiu guardar para si a cena – e os ensinamentos.
Abriu a porta da casa, e se deparou com a cena de todos os dias. Das Graças costurava uma toalha de mesa de retalhos. Zé do Caju achou a toalha bonita. De cores fortes. Agradeceu aos céus, em silêncio, por aquela mulher ser talentosa e prendada como era. Benedita estava deitada no sofá, com um de seus livros de literatura. Era uma menina bonita, e seria uma doutora mais na frente.

- Que houve, Zé? Cê ta branco – observou das Graças.
Zé do Caju não respondeu. Foi até a mulher e deu-lhe um beijo na testa. Chegou na filha e deu um beijo na bochecha que fez estalo. Em seguida saiu em silêncio para seu quarto. As duas se entreolharam.
- Você entendeu isso?
- Vai entender teu pai. Eu já disse, é o sol. É o sol.

***

3 comentários:

Anônimo disse...

Lindo.
Obrigado escritora!

Felipe Lobo

Anônimo disse...

muiiito boom Fernanda :D
adoreei!

- Ana Raquel

Anônimo disse...

Gente, obrigada! De coração!

Fernanda

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